Quando eu menos esperava, um telefone me acorda em plena madrugada. Atendi com a voz enjoada de sono e meu amigo sem nem deixar eu terminar de falar, recitou:
- Hoje eu sonhei que ela voltava
E vinha muito mais que linda
À meia luz me acordava
Cheirando a flor de tangerina
Eu lhe amava e mergulhava
No seu olhar de azul piscina
E docemente me afogava
Em suas águas cristalinas
Atordoado pelos versos rápidos que necessitavam de uma interpretação acelerada, fiquei tentando decorá-los antes que o meu colega desligasse. Mal terminou o último verso, desligou o telefone sem dizer “adeus”. Peguei qualquer coisa que escrevesse da mesa de cabeceira e anotei tortuosamente cada palavra que me vinha na cabeça. A ordem não ficou correta na primeira escrita, mas li novamente antes de dormir. E dormi.
Algo de sublime ocorrera naquele sonho. Talvez seja a letra que despertara em meu subconsciente uma volta no tempo e restituíra de vez a imagem de Coralina.
Portanto naquele dia eu sonhei que ela voltava.
Coralina, linda e linda, infinda e ainda menina (mas em meu sonho já era mulher), sempre cresceu comigo na pacata cidade em que morávamos. Ao amanhecer enamorávamos, com os poucos 6 anos, através de olhares e sorrisos. Não era a criatura mais bela do mundo. Só a do meu mundo.
Assim, Coralina vinha muito mais que linda.
Nos fins das tardes, brincávamos: corríamos até o olho d’água, atrás das cabrinhas recém nascidas, levávamos nossas pequeninas cabaças para beber leite de nossa vaquinha e quando parávamos para descansar, ela fingia que dormia. Eu a esperava dormir para descansar. Finalmente eu cochilava.
No belo crepúsculo que surgia no alto da pedra, à meia luz me acordava.
Abria os olhos lentamente e sempre a via frente-a-frente, quase um lábio-lábio e percebia sempre que seus cabelos molhados denunciavam o atrevimento de banhar-se no olho d’água. Enxugava-se com as folhas das árvores.
Acordava-me assim: cheirando a flor de tangerina.
Queria beber daquela água que escorria vagarosamente pelo corpo de Coralina. A inocência de criança era quebrada nesses momentos em todas as tardes. Fitava os seus claros olhos, meio achinesados.
Eu lhe amava e mergulhava no seu olhar de azul piscina.
E sempre, de despedida, beijava a sua boca. Demoradamente, gostava de sentir seus lábios como se fosse o último beijo de nossas vidas. Amava as suas leves mordidinhas. Fazia questão de sugar cada gota de água de riacho que molhava os lábios de Coralina.
Foi então que percebi que docemente me afogava em suas águas cristalinas.
Éramos duas crianças...
Acordei atônito e com uma série de déjà vus. Que canção era aquela que biografava minha vida com Coralina? Por que as palavras mexem conosco sem avisar nada?
Liguei para o meu amigo. Ele não me atendeu até hoje.
A música deve ser o silêncio confidencial das palavras...
Faryas y Albuqueruqe
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